Nesta pequena esquina do tempo é meu desejo que os relógios façam uma pequena paragem no seu eterno movimento rumo a um futuro ainda incerto e eu possa reflectir com cada leitor, sem pressas, o que foi a gesta das lutas libertárias pró-independentistas em Angola de modo a perceber-se quanto os estudos neste domínio do conhecimento têm andado todos estes anos carecidos de trabalhos sérios.
Por Carlos Pacheco (*)
De facto, os saberes relacionados com a História contemporânea de Angola, de 1950 para cá, têm sido objecto de toda uma sucessão de interferências a reboque de silêncios e hermenêuticas adulteradas. Em primeiro lugar por manipulações do Poder político dominante em Angola com a sua “fecundíssima fauna” de imbecis, e depois pelos círculos intelectuais e académicos na própria Angola, a que se associam também as esferas da intelligentsia portuguesa e brasileira. Uns e outros, na essência, não se diferenciam nos métodos pouco ortodoxos que utilizam.
Para exemplificar, trago a este espaço os raros estudos que se publicam relativamente à tragédia vivida por Viriato da Cruz, um dos maiores próceres do nacionalismo angolano que findou os seus dias humilhado e violentado na República Popular da China depois de ter sofrido horrores às mãos dos seus próprios companheiros do MPLA, como iremos ver mais à frente. Os registos de análise e interpretação saídos desses estudos quase sempre são do mesmo quilate: conclusões grosseiras, deturpadas, por vezes tão desonestas que desafiam as barreiras da inteligência.
São tantas as ocultações sobre Viriato (e não só) que se colhe a impressão de haver, especialmente nos círculos do conhecimento e nas catedrais de investigação das Universidades, uma perda do que se pode designar por bússola. Desta perda resulta um pântano sombrio de trabalhos plasmados pela falta de rigor e objectividade. E, acima de tudo, por interesses alheios ao conhecimento da história.
Resgatar deste crisol de deturpações a verdade sobre a tragédia política e humana de Viriato, impõe-se qual um dever de construção da consciência histórica nacional do povo angolano. No entanto, um sério «apego sujo» se interpõe no caminho deste dever histórico: o mito Agostinho Neto. Mito diante do qual os historiadores capitulam contaminados pela hipocrisia e pela propaganda do regime político de Luanda que projecta de Neto a imagem nietzsheana do Super-Homem. Um deus de carne e osso. Claro que aplicado a Neto este conceito de super-homem peca por uma deformação histórica fantástica. Porém, o que mais espanta é haver Universidades que se dispõem, na qualidade de instituições, a colaborar no culto a esta transfiguração (contagiadas também pela “síndrome do culto ao salvador”) e a converter Neto numa personagem, a bem dizer, dotada de espessura religiosa, acima do bem e do mal.
Viriato, pai fundador e arquitecto do MPLA em 1960, é inegavelmente uma das maiores vítimas da esquizofrenia sectária e conservadora do bando de chacais que comanda os destinos do Estado angolano. Do cérebro de Viriato brotou o projecto de criação daquela formação política, foi ele que lhe deu vida, identidade e músculo militar para iniciar a luta insurreccional. Contudo, desde cedo que invariavelmente se assiste ao contínuo assassinato simbólico da memória de Viriato tendente a torná-lo ignorado aos olhos das novas gerações. No panteão do MPLA só existe um nome, o de Agostinho Neto.
A fantasia que sustenta o mito Neto e a aura de “sacralização” que se lhe empresta, encarna algo de extremamente nocivo para o imaginário da sociedade angolana permanentemente sujeita a manipulações, as mais absurdas, com relação aos factos da História. Neto cometeu crimes hediondos no período da luta armada de emancipação. Por narcisismo, inveja, vingança e despeito ordenou a eliminação física de dúzias de companheiros seus, entre os quais figuras centrais na hierarquia política e militar do MPLA, da estirpe de um Daniel Chipenda que se salvou por uma unha negra, ao passo que outros não tiveram a mesma sorte. Terminaram os seus dias sacrificados pela vesânia tirânica de Neto. Dir-se-a que o ditador travava uma guerra consigo mesmo ao aniquilar aquele punhado de comandantes, todos com notáveis provas dadas nas adversas condições da luta guerrilheira.
Na mesma senda de loucuras políticas Neto deixou um inextinguível rastro de sangue na sua curta presidência à testa do Estado por ele aparelhado de falsas estruturas e conceitos a que chamou de Estado popular e socialista, quando na realidade empurrou Angola para a órbita do que havia de pior nas geografias políticas do mundo. Inaugurou um Estado terrorista, de feição nacionalista radical, comandado por uma burocracia xenófoba, unipartidária, militarista, policialesca, excludente, injusta e intolerante e inimiga das liberdades básicas essenciais. Um poder político detestável, hostil à verdade e à crítica, cujo Grande Chefe reproduziu no mais depurado estilo autocrático as velhas taras psicopáticas de Stalin, de Mao Zedong e de outros facínoras políticos que estiveram ou estão à testa de governos no mundo. Foi assim que, amparado num pretexto vil, Neto dizimou a ferro e fogo grande parte da militância pró-soviética do MPLA no sempre lembrado 27 de Maio de 1977 e, concomitantemente, promoveu uma matança civil nunca vista contra pessoas sem vínculos políticos oficiais e sem nenhum outro tipo de militância. Uma tragédia que deixou o país de luto até hoje. Somando-se a este assassinato em massa a perseguição movida contra toda a velha guarda pensante (social-democrata) do Movimento apodada de “traidora” e aviltada em calabouços e torturada selvaticamente.
Uma paisagem macabra logo nos alvores da independência nacional responsável por comprometer a chave política da esperança ante um futuro colectivo que se desejava promissor. Um futuro que redundou em desastre e sofrimento para o seu povo. Sem esquecer, logo no início da vida do MPLA, a conduta atrabiliária de Neto na Conferência Nacional do Movimento nos idos de 1962 ao proibir que a lista rival de Viriato da Cruz fosse escrutinada. Um acto de prepotência que suscitou nos delegados presentes à assembleia uma pesada atmosfera de insatisfação e constrangimento. Por último, sem o mais pequeno átomo de decoro, declarou que iria tomar a presidência do Movimento para si, quer concordassem ou não com ele. Um gesto de desaforo e temeridade que confirma o tipo de móbil que lhe incendiava os subterrâneos da mente: o poder soberano pertencia-lhe por inteiro, sem compartilhamentos.
Nesta equação de supremacia absoluta Neto considerava-se investido de qualidades superiores, de ser o predestinado para ocupar o trono do Movimento. Ele celebrava-se a si mesmo como o único capaz de ter mão segura sobre o leme do partido-guerrilha. Nenhum outro traço, por sinal, é tão revelador quanto este (a síndrome do escolhido) para se aquilatar da personalidade de Neto, o seu desmesurado egocentrismo cristalizado num forte pendor narcisístico que havia de se manifestar inalteravelmente no sentimento e na vontade de que acima dele não podia haver mais ninguém. O que veio depois foi consequência desta afirmação de superioridade plena do seu poder que fez da força bruta o seu principal pilar. Reforçado mais tarde pelo “culto à personalidade e aceite pela linguagem da mudez do seu exército de cortesãos submissos e bajuladores. Por incentivo desta forja de aplausos dos seus veneradores nascia então o ditador idolatrado até ao presente.
Ante o exposto, pode concluir-se que o carácter “sagrado” e “messiânico” que os seus panegiristas e facciosos lhe outorgam encerra uma carga subjectiva debaixo da qual se escondem imensos perigos. Juntem-se a isto os interditos e as censuras sob a alegação de que não há nada ou pouco a discutir na biografia política de Neto, por eles qualificada de exemplar, a não ser para o incensar pelas suas “superiores qualidades, sobretudo humanas e literárias”. Claro que se trata de um argumento sem nenhum valor, na medida em que se sabe quão controversos são os interstícios dessa biografia. O tipo humano e ideal criado em torno da figura de Neto (canonizado como o arquétipo de pai da pátria, o herói fabuloso e único) assemelha-se a uma bomba que urge desarmar, para utilizar uma noção do escritor polaco Adam Zagajewski. Uma bomba de efeitos nefastos, tantos os descaminhos e os erros trazidos ao processo de reconciliação nacional. Sem esquecer as graves rupturas e escombros havidos no passado e que têm abalado a grande família MPLA, desde sempre confrontada com ciclos permanentes de turbulência e divisões internas, pois nem toda a militância (incluindo as franjas simpatizantes) aceitam estes delírios ficcionais.
Afinal de contas, como desarmar o mito Neto e acabar com os tabus que o respaldam? Não disponho de uma harpa dourada como os profetas do destino, por conseguinte é-me difícil responder a esta questão quando se olha para uma boa parte dos estudos que estão aí contaminados pelo vírus do partidarismo. Um vírus que entorpece e frauda a capacidade de análise ponderada e racional de uma boa parte da intelligentsia angolana e de largos feudos académicos em Portugal e Brasil, estes últimos maioritariamente perfilados no papel de reservas ideológicas de apoio ao MPLA e ao seu poder de Estado. Contam-se por inúmeros os estudos impregnados por parcialismos políticos. Praticamente não se questionam os atalhos sombrios da História de emancipação nacional atravessados por relatos e situações pungentes de violências e mortes e por toda uma galeria de assassinos hoje reverenciados como heróis. O resultado é subsistir um enorme vazio historiográfico que abre brechas para que a burocracia dinossáurica do MPLA se sinta à-vontade para restringir, manipular e explorar em proveito próprio os horizontes culturais do país e abusivamente introduzir, a coberto de critérios partidários, rectificações no conteúdo das propostas curriculares e dos manuais didáticos adoptados no ensino da História.
O que significa dizer que, sendo este o ponto nuclear no quadro da hermenêutica histórica, a chamada “história pesada”, assim definida pelo historiador alemão Bodo von Borries, os estudiosos sistematicamente a ignoram e, no seu lugar, privilegiam as visões simplistas, canónicas. Terreno propício a distorsões e fragmentações do passado e da história em proveito dos tiros das ideologias.
Deplorável o que se observa. As minorias nativas pensantes e os historiadores estrangeiros, estes ainda que indirectamente, dão a sua aprovação para que a censura partidária sobre a Histórica medre e não se fale dela. Falseiam-se os factos e falseia-se o solo donde são arrancados e converte-se a história numa caricatura. Endogamia política eis, numa palavra, o rosto por trás do qual se esconde este alinhamento ou tolerância intelectual com o Partido dominante. Presos a tabus, parece que os historiadores evitam desenterrar o enigma da esfínge em Agostinho Neto; da mesma forma que evitam despertá-lo do seu sono eterno e desmontar todo o arsenal político da sua trajectória, temerosos talvez da sua sombra, tão presente e esmagadora; e, não menos, devido ao culto exagerado e doentio que se lhe dispensa, proporcional ao culto a uma figura bíblica.
Realmente ninguém ousa mexer no estranho tabuleiro da História e na posição das peças que o ocupam. Neto nesse tabuleiro marca a posição privilegiada e única de rei dos reis. Viriato, personagem fundacional do MPLA, ao contrário, dir-se-ia não existir. Apenas existe pela sua invisibilidade. O mito Neto apaga tudo à sua volta. Até a memória dos fundadores do MPLA se esfumou e em todos estes anos tão-pouco é lembrada e homenageada, permanece obscurecida pelas crenças e alucinações políticas de quem governa Angola.
Intercalo aqui uma pequena descrição de episódios criminais relacionados com acções torpes de Neto contra Viriato que os estudiosos em regra excluem da suas abordagens. Estamos a falar de toda uma espiral de abusos de poder, perguições, sequestros, mortes e outros crimes afins. Recuemos até 7 de Julho de 1963 em Léopoldville, data fatídica em que Neto pela primeira vez exibiu de si a face pletórica de um político barbaresco. Na noite desse dia subrepticiamente pôs-se em marcha uma operação de força secundada por gendarmes congoleses subornados por Neto com a finalidade de invadirem a pensão onde Viriato se hospedava e prendê-lo. À testa dessa legião (que mais parecia uma quadrilha de malandros) destacou-se uma personagem duvidosa, Manuel Guedes dos Santos Lima (futuro escritor), que se distinguiu por uma trajectória política cheia de sombras. Na época integrava a órbita dos notáveis do Movimento e respondia pelo comando do Departamento de Guerra. Um leal servidor de Neto, sempre pronto para toda a sorte de serviços, inclusive para os menos edificantes. Durante o tempo da sua vassalagem ao Chefe ele acreditava na justeza dos seus actos.
Ora, quando se deu o assalto à pensão, Viriato tinha acabado de chegar dias antes à capital do Congo procedente de Argel. Ao ser preso e retirado da hospedaria debaixo de um aparato de ostensiva violência, nenhum respeito e dignidade se lhe deferiu e tão-pouco se levou em conta o seu estatuto de ex-secretário-geral do MPLA. Lima deu o primeiro exemplo de total desfaçatez ao desferir em Viriato uma forte punhada. Arrancou-lhe os óculos do rosto e despedaçou-os com o peso das suas botas ao mesmo tempo que soltava gritos de satisfação e vomitava injúrias contra Viriato apodando-o de comunista. Seguiram-se os restantes malsins que surraram Viriato de forma desalmada, a golpes de bastonada, socos e pontapés. Caído no chão, o bate-bate selvático não parou. Continuaram a espancá-lo com redobrada intensidade, possuídos de uma fúria primitiva, enquanto por outro lado o achincalhavam e o cobriam com os insultos mais obscenos. Viriato arrastava-se indefeso, a gemer de dor, coberto de sangue. Neto e a camarilha de dirigentes que o cercava sorriam empolgados, em estado de entusiasmo violento. Festejavam a vitória iguais a demónios perdidos de loucos. Haviam conseguido o que queriam. Viriato finalmente achava-se prostrado aos seus pés, insignificante, derrotado.
Esclareça-se que dois dias antes a facção de Viriato, oponente de Neto, reunida em Assembleia Geral decidira retirar toda a autoridade ao Comité Director saído da Conferência de Dezembro de 1962 e votar num novo Comité suficientemente idóneo, garante da unidade, capaz «liquidar todas as divisões no seio do MPLA», tendo em conta a conduta prepotente de Neto na forma como se fez eleger no conclave de 62 ao apossar-se do cadeirão presidencial sem o escrutínio dos seus pares. Salvo o apoio de um núcleo de ”intriguistas” e “caluniadores” que ele converteu nos seus escudeiros. Foi tão grande a tormenta gerada por esta unilateral de Neto, que o Movimento se cindiu em dois grupos. Os militantes ficaram à deriva, uns entrincheirados nas suas fobias e tapumes ideológicos e outros numa relação identitária com as respectivas lideranças. O cepticismo relativamente ao destino do MPLA aumentou. Em vez do diálogo e de acordos selados no seio da organização passaram a imperar os antagonismos, cada dia mais crispados e violentos.
A arte do plebiscito que conforma a base da cidadania e a existência de uma comunidade de modo algum se combinava com a personalidade política de Neto. Aos seus olhos o desafio dos seus críticos internos equivalia a um gesto gravíssimo de desobediência ao seu domínio personalista, algo que o seu ego inflamado pela soberba e pela codícia de poder jamais podia tolerar. Perdeu a cabeça e optou pela lei do ferro ou da bala, tal qual se descreve em cima.
Mesmo assim, a brutal reacção anti-viriatista daquela noite não satisfez plenamente o conturbado psiquismo de Neto. O calvário de agressões a Viriato afigurava-se-lhe pouco. No seu cego afã de sadismo e vingança não havia limites para a humilhação de quem se lhe opusesse ou criticasse. A grandeza da sua liderança, no seu entender, tinha de ser protegida com sangue. Por isso, determinou que Viriato fosse posto a ferros em Lufungula, uma cadeia medonha administrada pelo Estado congolês, onde durante dois dias o submeteram às piores punições físicas e morais e às privações mais inumanas que quase o expuseram ao risco de perder a vida.
O tufão de violências, entretanto, não se deteve nesta fronteira. Mais de quatro dezenas de militantes viriatistas, também eles vítimas sacrificiais do ódio de Neto, sofreram idênticas crueldades. Muitos foram alvo de agressões selvagens dentro das próprias habitações pelas milícias de Neto que as invadiram a pontapés derrubando portas, segundo relatos de moradores de alguns bairros de Léopoldville que testemunharam a alucinação dos netistas e o alvoroço por eles provocado. Outros dezessete despediram-se do mundo ceifados pelos métodos extremos de violência já então devastadores nas entranhas do MPLA.
Naquela hora parecia que o universo inteiro se cobrira de trevas e uma tempestade de insanidade se abatera sobre os homens. Em simultâneo com a perda de vidas humanas, a verdade, o espírito livre e a crítica também se perderam. Sairam derrotados, petrificaram-se, sucumbiram sequestrados por uma pesada escuridão e no seu lugar despontou no MPLA um ambiente maléfico de mentiras e artifícios políticos que perduram até aos nossos dias.
Dirigido depois disso pelo arbítrio, pela ameaça e pela demência de uma liderança autoritária e sem controlo, o Movimento baixou ao reino das sombras, encurralado na paranoia do supremacismo partidário e incapaz de entender quem pensava diferente. A fobia contra os dissidentes e desafectos tornar-se-ia obsessiva e perigosa. Um bom número de militantes egressos das fileiras do MPLA amargou todo o tipo de represálias. Ora perseguidos, ora mortos.
A trágica noite de 7 Julho, que eu prefiro designar por “noite dos escorpiões”, por certo representou o prelúdio de inúmeros outros crimes que viriam a brotar mais adiante na linha do tempo, os quais, apesar de não serem mencionados pelos historiadores e permanecerem encobertos até hoje pelos inquisidores da ordem partidária, mancham de sangue as biografias de Neto e do MPLA. E fazem do “mito” indiscutivelmente uma figura histórica criminal. Os graves delitos por ele consumados desde o início do seu mandato como presidente do Movimento desmentem a estafada imagem que se criou dele, de “humanista”, não obstante a sua condição funcional de médico, de alguém que salvava vidas ou as curava das suas doenças. Neto na sua essência não era um homem bom no sentido moral e ético da palavra. Faltava-lhe empatia com a humanidade, a sua personalidade narcisista criou um deserto dentro do MPLA, pulverizou a utopia da unidade, dividiu mais do que agregou e foi uma espécie de Golem, o falso salvador na peça dramática do poeta russo H. Leivick que prometia a libertação restauradora da união, embora só oferecesse a violência.
Este foi, digamos, o combustível da dinâmica de Neto em cada instante do fluxo da história. O combustível do autoritarismo e da morte, duas ameaças continuas no MPLA presentes nos dias que correm. Dois anos depois daquela noite as “brasas fumegantes” do ódio de Neto voltaram a crepitar sobre velhos companheiros. Desta vez contra Matias Miguel (ex-1.º vice-presidente do MPLA) e José Luís Miguel, ambos abatidos por ordem expressa de Neto na vila militar de Dolisie em ritual marcado por requintes de crueldade e que culminou com a cabeça de ambos estouradas a tiro de pistola pelo comandante Fernando Manuel Paiva (“Bula Matadi”). Capitaneava a turba de matadores Lúcio Lara, alter-ego do ditador e seu Satã, que teve ao seu lado na cena do crime outros chefes militares, seus capatazes, todos conhecidos.
Percebendo nesta imolação dos seus lugares-tenente um sinal de perigo eminente, visto que a qualquer instante as garras mortíferas de Neto o podiam igualmente alcançar, Viriato abandonou a Argélia (onde se estabelecera doente após a prisão em Léopoldvilli) e trasladou-se para Paris. Na capital francesa, ajudado pelo advogado Jacques Vergès, comunista de tendência maoísta, ele rumou para Beijing (Pequim) em busca de uma “cortina de ferro” que o protegesse.
Na China as elites do Partido Comunista acolheram-no com simpatia e admiração. Por ser uma personalidade vincadamente culta e um revolucionário africano credor de grande respeito na roda das lideranças pró-chineses em África, Brasil e Europa, Viriato impôs-se pelo encanto do seu intelecto e pela força das suas convicções doutrinárias. Por reconhecimento destes méritos as autoridades chinesas convidaram-no a trabalhar no Bureau dos Escritores Afro-Asiáticos. Uma lua de mel que, em princípio, se contornou auspiciosa para Viriato por se lhe oferecer o ensejo de contribuir para o avanço do movimento revolucionário e libertador no mundo, notadamente no continente africano.
Neste entretempo o céu político da China toldou-se de sinais ameaçadores. O país mergulhou num imenso lodaçal de conspirações palacianas sob o signo da Revolução Cultural Proletária superiormente orientada pelo “romanticismo revolucionário” de Mao Zedong e posta em prática pelos ultraesquerdistas que o cercavam, os quais, agindo como tigres famintos, conclamavam por um grande expurgo nas fileiras do Partido e das Forças Armadas. Ninguém deveria ser poupado. Nem os «velhos camaradas em armas, [nem] os colegas ou até maridos e esposas», conforme se pode ler na obra clássica do historiador inglês Frank Dikötter, A Grande Fome de Mao. A História da Catástrofe Mais Devastadora da China, (1958-62). Inúmeras figuras cimeiras do regime, atingidas pela face negra deste delírio político, acabaram por ter os seus nomes e reputação calcinados pela acusação de liderarem a “linha revisionista e contra-revolucionária” do Partido (designada no jargão maoísta por “linha reaccionária burguesa”) ou de a ela aderirem. Em paralelo com este furacão desencadeou-se uma campanha anti-intelectualista justificada pela necessidade de combater os vícios culturais burgueses.
Tanto quanto pude perceber da leitura de vários documentos, Viriato gozava de um bom relacionamento político e intelectual com alguns dos dirigentes amaldiçoados. No entanto, não tardou que os inquisidores do selvagismo revolucionário também o enredassem num sem-fim de cabalas. Perdeu a confiança das lideranças feudatárias do radicalismo doentio de Mao que o confinaram numa espécie de quarentena ideológica, vigiado pelos orgãos de inteligência e pelos guardas vermelhos, verdadeiros “cães predadores e assassinos” do Partido. Até ao dia em que o removeram do hotel onde vivia hospedado com a família e o emparedaram num gueto, um bairro periférico, a sul da capital, totalmente isolado do contacto com estrangeiros, sujeito ao desterro, à dor, ao medo e à pobreza e a todo o tipo de provocações e brutalidades por parte dos jovens estudantes da Guarda Vermelha que o humilhavam.
Um turbilhão de vexames e terrores, em que não faltou espiolharem-lhe toda a correspondência epistolar. Agravado pela proibição de sair da China. Uma exigência imposta pela força que o reduziu à mais abjecta expressão da ignomínia, de prisioneiro perpétuo, sem crime algum, condenado a viver numa terra que já não lhe era desejável e pela qual passou a sentir repulsa. Tragicamente uma cadeia de horrores que desaguou na sua morte inesperada a 13 de Junho de 1973 no hospital de Beijing depois de ali ser abertamente maltratado pelo médico que o assistia, cuja conduta, do princípio ao fim, se revelou típica de um indivíduo “provocador”, malsão e até delinquente. Pouco antes de baixar à sepultura Viriato na cama do hospital denunciou esta situação no último dos seus escritos, um precioso testemunho (que já divulguei na minha obra, Agostinho Neto, O Perfil de um Ditador. A História do MPLA em Carne Viva, vol. II, p. 1040), onde, sem nenhuma concessão ao subjectivismo, ele aponta o facto de o médico estar a assassiná-lo.
Abominável o desprezo como os chineses trataram o seu cadáver, eis outra crónica de horrores que se torna necessário recuperar um dia para a memória de todos. Um flagrante vilipêndio sobre uma personalidade estrangeira. Todavia, até ao momento, que se saiba, os historiadores em Angola (e os africanistas em Portugal, Brasil e outros quadrantes) nada escreveram ou fazem vista grossa sobre o trágico final de Viriato e sobre a hipótese do seu envenenamento. De novo se tenta, do meu ponto de vista, exonerar Neto de responsabilidades por tamanho desfecho calamitoso. Em 1971 ele visitou Beijing e assinou um programa de reforço da cooperação dos chineses com o MPLA nos domínios da assistência técnica e militar. Surpreendentemente a situação de Viriato piorou – e de que forma – a partir dessa visita de Neto. Um cenário de grande sofrimento, literalmente menosprezado pelo comportamento farsesco e criminoso das autoridades chinesas e do próprio Neto.
À guisa de ilustração, e para responder aos meus objectores, evoco de forma resumidíssima as palavras de Paolo Pasolini ante a explosiva situação política da Itália na década de 1970 abismada pelos fantasmas do terrorismo (massacres em Brescia e Bolonha), seguidos de uma série de golpes neofascistas e antifascistas e por cruzadas anticomunistas enquanto estratégias de protecção do poder de Estado. A propósito deste caldeirão de chacinas e atentados, dizia então o poeta, romancista e cineasta italiano: «Eu sei o nome dos responsáveis. Eu conheço todos os nomes e todos os fatos dos quais são culpados. Eu sei. Mas não tenho as provas».
Acaso restarão mais dúvidas para se desmontar todo o mistifório de versões falsas a respeito deste enredo? Neto estranhamente nunca se empenhou em resgatar o seu compatriota (pai do MPLA) das fúrias apocalípticas do maoísmo, mau grado as divergências que os separavam. Sem nenhum assomo de dignidade humana, política e cívica alheou-se de tudo completamente e deixou aos estrangeiros o ónus de acabarem com a integridade física de Viriato. Um gesto passível de ser interpretado como sinal de entendimento macabro entre ele e os dirigentes comunistas. Uma nódoa indelével cravada na história da luta libertadora.